24 de novembro de 2012

Sobre cicatrizes


Ela achou ligeiramente engraçado o modo como se trataram quando se reencontraram numa tarde, naquela antiga praça. Agiram como se fossem apenas dois conhecidos seguindo as regras da boa convivência. Atuaram como se não possuíssem um passado em comum, como se no passado, não tivessem chegado a possuir, um ao outro. Os modos eram contidos, e os sorrisos sempre tímidos, a única coisa que podia entregá-los eram os olhos. Os olhos estavam virados, davam voltas, os olhos lembravam.

Ela perguntou como ele andava. Ele admitiu que passava por uns problemas. “Mas nada demais”. Ela sorriu e assentiu como se acreditasse; ainda o conhecia melhor do que ele imaginava. Ele perguntou como ela estava. Ela disse que estava bem. Ele pensou que aquela era a coisa certa a se responder; ela parecia mesmo bem. Passaram algum tempo se encarando, com olhos voltados a um passado distante.

“Você não mudou nada”. Ela comentou mais pra si mesma, do que pra ele. Ele deixou a cabeça pender. “Eu me mudei.” Brincou, disfarçando a frustação que sentia. Não era assim que ela deveria vê-lo depois de tanto tempo. “Você mudou.” Ele sentenciou com certa nostalgia. “O cabelo, eu cortei, pintei...”. “Não”, ele disse, “você mudou aí dentro”. E apontou para a mulher que estava parada a sua frente. Ela esboçou um pequeno sorriso. “Eu cresci”.

Por um instante, a atmosfera entre eles mudou também, tornou-se mais intima e morna. Ele começou a suar. Ela percebeu. Então voltaram a comentar sobre coisas superficiais, sobre o tempo, falar sobre o clima. Era impressão deles ou fazia mais frio na cidade? Sentaram-se um pouco num banco ao lado de uma árvore que fora cortada. Ela lembrou que já estivera ali com ele. Mas lá atrás a árvore ainda lhes fazia sombra. A árvore ainda era árvore. Ficaram por alguns momentos discutindo bobagens que não tinham raízes no passado.

Finalmente ele disse que tinha que ir, já estava atrasado para um compromisso. Ela leu nos olhos dele que não havia nenhum, mas não resistiu a sua partida. Já era mesmo hora deles se despedirem. “Nos encontramos por aí”. Foi o que ele falou. “Até mais”. Ela lhe respondeu. Por dentro, murmurava um resignado “adeus”. Nunca mais se veriam. Nunca mais se esqueceriam.

Deixou que ele sumisse de sua vista e voltou a se sentar. Seus olhos foram atraídos ao presente. Passou a observar a árvore que não existia mais, e se compadeceu dela. Cortaram seu tronco e deixaram-na como se estivesse em carne viva. Expuseram sua ferida. Relegaram-na a mostra só pra ressuscitar na memória a dor da lembrança do que um dia ela foi.

Veio a sua mente a imagem de que eles foram como aquela árvore, um dia flor, um dia frutos, um dia sombra, um dia amor. Um dia a vida cortou o que existia entre eles e deixou que se reencontrassem ali. Para que todos pudessem ver o que restou. Assim como fizeram com a árvore cortada, expuseram a sua cicatriz e ressuscitaram na sua memória a dor da lembrança do que um dia eles foram. Do que deixaram de ser.

Árvores são cortadas todos os dias. E numa proporção bem menor, árvores são plantadas todos os dias. Ela costumava viver de pequenas plantas. Pôs a mão no bolso e tirou de lá algumas sementes que há muito tempo não tinha coragem de usar. Sementes de confiança, de oportunidade, de esperança. Sementes de amor. Levantou-se e foi plantar uma árvore em um lugar fértil a eternidade, decidida a fazê-la crescer, a fazê-la durar. Decidida a não deixar que ninguém a derrubasse. Nem mesmo a vida. Levantou-se decidida a deixar as cicatrizes para trás. Decidida a voltar a amar.

18 de novembro de 2012

Sobre Marcos de Sousa



Marcos de Sousa possui uma forma muito especial de ver o mundo, e é sob esse olhar que ele escreve seus textos, principalmente suas poesias. Sim, Marcos é um poeta, tem um blog lindo e em breve lançará seu primeiro livro: Coração de vidro. Gostaria de conhecer um pouco mais sobre o vencedor do concurso “O que te inspira?”? Então confira essa entrevista que o Marcos deu para o Ideias Defenestradas.

1. Oi Marcos. Bom, começaremos do principio. Há quanto tempo você escreve? Como se apaixonou pela escrita?

Olá, Malu. Bem, eu escrevo há muito tempo. Porém, comecei a escrever mesmo, com o intuito de tornar-se escritor, há três anos. Foi por incentivo de uma professora que leu meus textos, apoiou-me e incentivou a divulga-los.

Na verdade, eu me apaixonei pela leitura e com ela, veio a paixão pela escrita. Infelizmente, me tornei um verdadeiro leitor já tarde. Eu estava na sétima série no ensino fundamental e fui obrigado a ler Machado de Assis. Foi paixão a primeira vista, ou, a primeira lida, como preferir.

2. Quais são os principais autores ou obras que influenciaram o seu modo de escrita?

A princípio, eu me inspirava única e exclusivamente no Machado. Foi meu primeiro amor. Depois, fui abrindo horizontes, conhecendo novos estilos, escritores e acabei apaixonando-me pela poesia. Daí em diante, os autores que mais me influenciaram foram Vinícius, Quintana e Drummond. Posteriormente, conheci Clarice Lispector e Caio Fernando Abreu. Acabei por aderir aspectos da escrita deles, principalmente o subjetivismo de Caio e a atualização da “epifania” clariciana.


3. E se você pudesse conviver com seu escritor favorito por um dia, quem seria ele? E o que lhe perguntaria?

Essa é difícil. Escolher apenas um entre tantos que venero é quase maldade. Mas acho que eu escolheria o Caio, se ele estivesse ainda vivo, é claro. Talvez até não perguntasse nada. Acho que a emoção seria tanta que eu me calaria diante de seu talento e criatividade. Mas, se conseguisse esboçar palavras, talvez o perguntasse o que realmente o inspirava. De onde e como ele canalizava tanta profundidade e beleza.


4. Pelo que já vi no “O mundo sob o meu olhar” você prefere se expressar por meio da poesia. Por que?

Eu costumo dizer que, para contar um romance em prosa, é necessário escrever um livro. Para contar em versos, basta escrever uma poesia. A poesia é síntese. Cada verso contém um universo. Em cada refrão, tudo muda. Não querendo exaltar a poesia porque eu a escrevo, até porque também amo prosa, principalmente crônicas, mas a poesia e a prosa poética são o ponto máximo da subjetividade e beleza.

5. Falando a respeito da sua participação no concurso. Sua foto combinou perfeitamente com o seu parágrafo, qual a história por detrás dela?

Aquela foto foi tirada na manhã seguinte do meu baile de formatura. Após o baile de formatura, fui assistir o nascer do sol na praia que ficava em frente à casa de festas. A foto não foi combinada, foi tirada espontaneamente. Ela sempre foi uma das minhas preferidas. Até porque, acho o nascer do sol umas das poucas belezas restantes neste mundo.


6. Não posso deixar de falar sobre seu livro. Qual é a sensação de saber que em breve ele será publicado?

Sinceramente, ainda não sei. Ainda não “caí na real”. Desde que recebi o “sim” da editora, parece que minha vida virou um sonho. Não é um sonho virando realidade, mas o contrário: a realidade tornando-se um sonho. Muito mal comparando, acredito que deve ser a mesma sensação de ir ao espaço. Você conquista o que para muitos será impossível.


7. Afinal, sobre o que fala Coração de vidro? Gostaria de falar um pouco dele pra gente?

O livro “Coração de Vidro” é uma antologia poética, ou, um romance em versos, como eu prefiro chamar. Ele demonstra a transformação de uma vida, a metamorfose do ser após ser tocado pelas sutilizas do amor. O livro é divido em duas partes: “Brejo dos Corações” e “Coração de Diamante”. O objetivo é realmente demonstrar as duas fases da vida: o antes e o depois do amor.

Apesar de “brega” para muitos, o amor realmente muda a vida, transforma seres. Ele nos faz pessoas melhores. Provei disso e sei o que estou falando. O amor é, e sempre será, a força geradora da humanidade. As pessoas são tão descrentes deste sentimento porque experimentam a sua versão mais desprezível: a paixão. Elas confundem paixão, desejo e luxúria com amor. Amor transcende a tudo isso. Amor é querer bem, sentir-se bem, tornar a si mesmo melhor. Os românticos, mas só os verdadeiros românticos, me entenderão. O livro é exatamente isso.

Por hoje é só. Obrigado Marcos! E vocês, o que acharam da entrevista dele?

11 de novembro de 2012

Sobre o barulho


Salão de Festas

Eu posso ouvir o barulho
Que ecoa do salão de festas
Eu posso ouvir as vozes
Que vibram ao deixar escorrer a violência
Eu posso ouvir a canção
Dos que entoam a banalização da morte
Eu posso ouvir o mundo
Que irrompe em comemoração
Esta é a celebração da dor
Que a vida acolhe
Como a infância abandonada
Por um pai injusto e cruel
Eu posso ver o tumulto
Das suas danças coreografadas
Eu posso acompanhar seus passos
Ao som da música tocada
Essa cantoria que se espalha
Poderosa e desafinada
Júbilos dos que perderam a fé
Ah, eu posso vê-los
Convidados impassíveis
E assistir a seus atos vãos
Ah, perdoem-me, mas eu posso vê-los
Irreprimíveis
E chorar a sua próxima ação
Inconsequentes
Lançarão em uma mesa de aposta
Os nossos bens preciosos
E o dono da casa sorrirá satisfeito
Em suas mãos, detém a vitoria
A consciência calejada que acusa
É um sussurro abafado pelo desejo
Eu posso sentir
Escorrer pela minha face
As cruas lágrimas vermelhas
Eu sei, chegará o furioso tempo
Em que o véu da ilusão que paira sobre nossos olhos
Se desintegrará
E o barulho que não cessa
Haverá de fluir
Para a margem do desespero
Eu sei, chegará o calamitoso tempo
Em que encararemos o espelho e veremos
As nuances da nossa verdadeira natureza
Atrás de nós, um rastro de sangue
Que não pode mais ser encoberto
Eu posso prever o amanhecer
Que precede o fim da festa
E então não sobrará mais nada
A não ser a sujeira deixada pra trás
Que se acumula em um canto
De um mundo vazio e esquecido
Na tentativa de substituir nossas perdas
O futuro é um rio de águas claras
Quando o jogo terminar
O vencedor levará consigo os ganhos
E a nós, os meros humanos
Não sobrará mais nada
A esperança, a vida e o amor
Entregamos às mãos erradas
Às consequências
Nós perdemos tudo

2 de novembro de 2012

Sobre Comprometimento

- Como posso ajudar? – Perguntou a atendente com um sorriso simpático assim que a Cliente entrou na loja.
- Eu estou procurando por uma boa Amizade. – Respondeu a Cliente. Esquivando-se da Vendedora para olhar além dela. – Já passei em várias lojas, mas parece que o produto está em falta, pois não encontrei em lugar nenhum. – Acrescentou.
- Bem, nós também não possuímos esse produto no nosso estoque no momento. – Admitiu a Vendedora. – Mas podemos encomendar para a senhora se quiser.
A Cliente maneou a cabeça, frustrada.
- Bom, em no mínimo três ou quatro anos.
- Meu Deus! É muito tempo.
- Eu sinto muito, mas é um produto extremamente difícil de ser confeccionado. Principalmente se quiser garantias.
- Sim, sim. É claro que eu iria querer garantias.
- Então terá de esperar por uns três ou quatro anos.
- Não, tudo bem. Deixa pra lá. – Disse, em desistência.
- Espere! – Pediu a vendedora procurando uma maneira de não perder a cliente. – A senhora não quer dar uma olhada nos outros produtos? Temos de tudo aqui... Quero dizer, quase tudo.
- Eu não sei... – A Cliente pensou por um tempo, aumentando a ansiedade da Vendedora. – Vocês não teriam algum Amor perdido por aí, teriam?
O rosto da vendedora iluminou-se automaticamente.
- Oh, é claro! O que não falta é amor! Siga-me. – Pediu a Vendedora, enquanto rapidamente se pôs a caminhar por entre prateleiras lotadas de produtos que não paravam de sair e, quase ao mesmo tempo, de serem repostos.  A Cliente passou o olho por um desses produtos e leu: VINGANÇA. MAIS RÁPIDA E EFICIENTE. Passou direto.
- Aqui está! – Cantarolou a Vendedora, muito animada, erguendo os braços para a prateleira a sua frente. A Cliente se aproximou de um dos frascos que ali estavam. Dizia: PAIXÃO INSTANTÂNEA. FICA PRONTA EM APENAS 3 MINUTOS!
- Na verdade, eu queria Amor e não Paixão. – Explicou a Cliente, desanimada.
- E qual a diferença? – Perguntou-lhe a Vendedora de modo desdenhoso.
- Bem... Paixão é comida industrializada. – Respondeu a Cliente, dando de ombros. – Amor é matéria-prima. Amor a gente prepara em casa.
- Mas também não demora de ficar pronto?
- Sim, mas...
- Pois então! Se não é capaz de esperar pela Amizade, quanto mais será capaz de esperar pelo Amor! – A Cliente calou-se, percebendo que ia ter de aprender a esperar se quisesse algo de valor.
- E... E sucesso? Vocês têm?
- Ora, mas é claro! – Disse exultante a vendedora, voltando a conduzir a Cliente pelos labirintos da loja. Finalmente algo que eles tinham de sobra. Depois de um minuto, parou em frente a uma prateleira. – Temos Sucesso de todos os tamanhos e cores. Pode ficar à vontade.
A Cliente se aproximou com certo receio. Tocou em alguns Sucessos e reparou nas suas cores e nos preços exorbitantes.
- Mas são muito caros!
- Mas vale a pena.
Na verdade, não valia. Todos os Sucessos pareciam mal feitos e artificiais.
- E então? Qual vai levar?
- Acho que nenhum.
- Nenhum?! – Já irritada, a Vendedora se exaltou um pouco. – Por que?!
- É que... – A Cliente procurou uma desculpa. – Eu Percebi que ainda tenho algum Sucesso em casa e está em boas condições. O que eu quero mesmo é uma dose de Organização. Vocês teriam por aí?
A Vendedora suspirou, cansada. Começou a pensar que aquele seu esforço não valeria a venda. Voltaram a caminhar por entre as fileiras de produtos tão apressadamente que de vez em quando a Cliente se esbarrava em alguma coisa.
Num desses esbarrões ela percebeu que havia derrubado algum produto. Era um saco velho, meio empoeirado, já com a data de validade apagada. O pegou de qualquer jeito e o devolveu a prateleira a que parecia estar confinado para o resto da vida. Foi quando notou do que se tratava: COMPROMETIMENTO.
Aquilo ainda existia? Ficou tão surpresa que acabou retirando novamente o COMPROMETIMENTO da prateleira. Olhou-o com mais atenção. Sabia que era um tipo de fertilizante. Bom, ela não tinha uma plantação, mas sempre achou que seria uma boa ideia ter uma. Daria trabalho, ela sabia, mas se não desse certo, ao menos seria uma boa aventura.
Espere. O que ela estava pensando? Não era pra isso que servia o comprometimento? Para que, apesar do trabalho empregado em qualquer coisa, ela valesse a pena no final? Sim, acreditava que era algo assim.
Recuperando a agitação, chamou pela vendedora que se voltou com uma expressão carrancuda.
- Esqueça a ORGANIZAÇÃO, o SUCESSO, a AMIZADE e o AMOR. Eu vou levar isto. – entregou-lhe o saco de Comprometimento.
- Mas e quanto ao resto?! – Desesperou-se a Vendedora.
- Ah, não se preocupe! – Disse-lhe. – Eu vou cultivar os meus próprios produtos.